quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A arte de um mago do sopro - Felipe Moraes–Correio Braziliense


Livro sobre Paulo Moura é acompanhado de um álbum inédito

Há pouco mais de um ano, Paulo Moura deu o último sopro de vida. Deixou a música instrumental órfã de um de seus maiores intérpretes: um clarinetista, saxofonista e compositor que, além de passear com classe por vários estilos (choro, jazz, samba e música erudita), não via separação entre voz e acorde. Em vez de sussurrar refrões e versos em português, murmurava uma melodia que parece vir da alma brasileira. “Não importava se ele acompanhou, algum dia, Elis Regina ou Milton Nascimento. O que importava é que ele podia estar presente ao lado dessas e outras estrelas e não atrás, não ser músico que fica escondido e que vira uma orelha ou dedo na tela da tevê. Ele desvendou as moléculas de uma célula. Mostrou como era a constituição estrutural da música brasileira ao fazer com que ela fosse aceita sem palavras”, descreve Halina Grynberg, que foi casada com ele por 26 anos e atuava como produtora musical. Na compilação de entrevistas Paulo Moura, um solo brasileiro (Casa da Palavra), em edição bilíngue e com um disco produzido por André Sachs, Fruto maduro, ela apresenta conversas editadas a dois meses da morte do musicista, aos 77 anos.
No último dos diálogos da coletânea, que monta uma biografia completa narrada em primeira pessoa, Moura lamenta o espaço estreito reservado à “música para ser ouvida”, no Rio de Janeiro. “Era ali, no Bottle’s Bar. E eu queria o mundo…”, confessa. Queria e conseguiu. Paulista de São José do Rio Preto, mas criado no Rio desde adolescente, ele entrou na música incentivado pelo pai, carpinteiro no dia a dia e clarinetista nas horas de folga. Moura estudou piano, porém, logo se desviou para o sopro.
“Historicamente, na música erudita, a clarineta é anterior enquanto instrumento presente nas grandes composições. O saxofone não era instrumento solista nas orquestras eruditas”, lembra Halina. Ele era assim: frequentava bailinhos e gafieiras e tinha um conhecimento que o permitiria viajar o mundo, sempre com um sorriso generoso, e escrever um repertório com mais de mil folhas, segundo a autora.
sonobrrasil
Paulo Moura, um Solo Brasileiro
De Halina Grynberg. Edição bilíngue. Versão para inglês: Gleen Haynes. Casa da Palavra, 240 páginas. Preço médio: R$ 55. Acompanha o disco Fruto maduro (Instituto Paulo Moura, 10 faixas), produzido por André Sachs.
Poesia não verbal
Moura foi atrás de todos os sotaques possíveis: o samba dilatado de pé, samba do Rio, ritmos africanos e a herança europeia, sobretudo a espanhola. “A principal virtude foi dar existência à música instrumental como um bem popular. É como se ele fizesse parte, com a sua música, da natureza, dos sons das folhas, do vento, dos pássaros, do mar, do rio que corre, da pedra que cai. Ele captou o ambiente sonoro da identidade do Brasil”, explica a escritora.
É um chorão e um dos ícones do samba-jazz, gênero relacionado a outros grandes, como Edison Machado, Moacir Santos e Sérgio Mendes. Escreveu arranjos para todos os estilos, uma produção que, avisa Halina, será digitalizada por meio do Instituto Paulo Moura. “Se ele pegava uma peça, ia vertendo, ‘transcriando’, no sentido de Haroldo de Campos: podia ser para um duo de piano, quatro clarinetas ou uma big band”, adianta, sobre um catálogo que não terá sede física, apenas virtual.
Último registro
O disco Fruto maduro, que levou cinco anos até a finalização, exibe um instrumentista em constante metamorfose: ele visita sua própria obra e ainda assim evolui, abrindo os braços para uma produção mais eletrônica, regida por André Sachs. Moura ia à casa de Sachs uma vez por semana. No estúdio — ou “cafofo” — do amigo, eles gravavam com paciência, de vez em quando esbravejavam um com o outro, e se davam o direito de jogar fora e tentar de novo. Com talento e suor, Paulo Moura soprava sons sem idioma, tão brasileiros quanto universais.
Trecho
“O João Gilberto certa vez me falou, ele ainda estava começando, que queria que o som dele, a voz dele, se assemelhasse a um trombone. Eu, às vezes, tenho dificuldade, trabalho muito para dominar o som, principalmente para que ele seja de clarineta mesmo, mas talvez por isso, por ler muitas partituras e gostar de orquestração, eu me contagio ao estudar uma música nova e tenho de controlar para que o som seja de clarineta, não de trombone ou de contrabaixo…”
Paulo Moura, em entrevista a Halina Grynberg

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